quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

O Protesto na Festa: Política e Carnavalização nas Paradas do Orgulho LGBT

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Abaixo transcrevo texto completo, de minha autoria, publicado pela Associação Brasileira de Psicologia Social - ABRAPSO. Disponível originalmente aqui. É uma análise psicossocial dessas grandes manifestações sociais, políticas e culturais.
Fiz uma apresentação oral do trabalho durante o 16º Encontro Nacional da Abrapso, ocorrido no Campus da Universidade Federal de Pernambuco, no Recife, entre os dias 12 e 15 de novembro de 2011.
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O PROTESTO NA FESTA: Política e Carnavalização nas Paradas do Orgulho LGBT
Jaqueline Gomes de Jesus
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Introdução
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Autores como Schermerhorn (1967) utilizam em suas análises acerca das minorias políticas e sua relação com a sociedade o conceito de que essa é uma relação de poder que é afetada em períodos e situações de mudança social. Isto significa que a subordinação de um grupo social a outro tem diversas formas de se expressar, diversos graus de subordinação, e os membros do grupo dominado desenvolvem diferentes estratégias de enfrentamento às pressões por parte das coletividades que detém poder.
Como indicam Taylor e Moghaddam (1994) e Galinkin (2001), a forma como uma pessoa se identifica socialmente a um grupo, diferenciando-o dos demais, é uma experiência cognitiva e afetiva determinada pela comparação e contraposição entre os valores atribuídos ao grupo a que se adere (ingroup) e os valores atribuídos aos grupos limítrofes ao grupo ao qual se adere (outgroup). A formação dessa identidade social não se restringe a uma identificação estanque.
Os indivíduos tendem a favorecer os próprios grupos, e quando existem desigualdades na distribuição do poder social entre os grupos, os membros do grupo com maior poder exercem opressão sobre os membros do grupo com menos poder (Tajfel, 1982a, 1982b, 1982c). Como discute Hall (1997), estereotipar faz parte do mecanismo de manutenção da ordem social e simbólica, por meio da naturalização das desigualdades e exclusões, estabelecendo uma fronteira entre o normal/aceitável e o desviante/patológico.
Um dos fenômenos observados nesse processo de opressão é a valorização de traços atribuídos ao grupo em vantagem e a desvalorização de traços atribuídos ao grupo em desvantagem (Tajfel e cols., 1971), algo que Elias e Scotson (2000) exploram ao investigar e conceber as concepções contrapostas de que as pessoas do grupo em vantagem se “estabelecem”, ao contrário dos do outro grupo considerado como de “forasteiros”. É uma metáfora espacial significativa.
Decerto as relações entre os grupos sociais na atualidade não são desconectadas de uma construção histórica extremamente contraditória. No ensinamento de Torres e Dessen (2002; 2008) acerca da cultura brasileira, a desigualdade, além de ser aceita, é um padrão da cultura nacional. Em quaisquer organizações nota-se claramente um contínuo de dominação e discriminação relativo ao racismo, ao etnocentrismo, ao machismo, à homofobia, ao classismo, entre outras dimensões.
O estabelecimento de uma sociedade que utiliza de forma intensa as tecnologias da informação e a comunicação subsidia a adaptação das antigas moralidades às práticas sociais de hoje, visto que a troca de informações em rede se torna elemento central da atividade humana (Castells, 2008). Isso ocorre em um sentido de seleção, por equiparação, dos novos valores aos valores anteriores, e não por adequação dos novos valores aos valores anteriores, tamanha é a discrepância ideológico-pragmática entre eles.
A marcação das diferenças e, concomitantemente, das exclusões, relata Hall (2009), é produzida ―em locais históricos e institucionais específicos, no interior de formações e práticas discursivas específicas, por estratégias e iniciativas específicas‖ (p. 109). Ora, segundo o autor, é dessa mesma conjuntura discursiva e de poder que emergem as identidades, ou seja, as identidades são ―naturalmente‖ marcadas pela não-unicidade e pela diferenciação interna.
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Fundamentação teórica
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1. Identidade de Gênero e Orientação Sexual na Contemporaneidade
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O mundo contemporâneo é marcado por transições na compreensão e na constituição subjetiva dos grupos sociais, especialmente os historicamente discriminados (Bhabha, 1998; Hall, 2006), que lutam para serem tratados como interlocutores legítimos frente aos demais.
Com a valorização da diversidade como característica fundamental da humanidade (Allport, 1954), as identidades dos grupos dominantes, em geral brancos, machos, heterossexuais e cisgêneros (cuja identidade de gênero está de acordo com o seu sexo — identidade de gênero é definida como a forma pela qual os sujeitos se identificam com um gênero, nos seus mais diversos aspectos e implicações pessoais e sociais), não mais podem ser vistas como a única expressão da diversidade a se reconhecer, mas como mais uma entre as demais (Loden & Rosener, 1991).
A identidade social é intrinsecamente ligada ao grupo. Tajfel (1982) define identidade como a “parte do auto-conceito dos indivíduos que deriva do seu conhecimento de pertencimento a um grupo social, associado à significância emocional desse pertencimento” (p. 24). Essa concepção de identidade como um posicionamento dos sujeitos frente ao sentimento de pertencer a um grupo é reiterada por Hall (2006), Louro (1998) e Parker (2000).
Segundo Festinger (1964), a comparação social é decorrência da busca do indivíduo por informações mais completas acerca de si, a partir das percepções de outros. Dessa forma, a constituição da identidade social não se dá isoladamente, mas a partir de comparação com outras identidades e categorias sociais.
Touraine (1997) considera que a modernidade racionaliza e subjetiva os sujeitos por meio de um mecanismo de formação de identidades coletivas, cuja origem Melucci (1989) vai identificar nas dimensões subjetivas, afetivas e culturais dos novos movimentos sociais. Essa reflexão é abordada por Bauman (2005) a partir da concepção de que, no mundo contemporâneo, marcado pela velocidade das mudanças sociais, o sujeito fica deslocado, as relações pessoais e interpessoais se tornam fluidas, de modo que o indivíduo pode vivenciar diferentes identidades sociais.
Butler (2009) e Cavarero & Butler (2007) ilustram essa condição das identidades ao entender que, contemporaneamente, é impossível evitar que as identidades sejam vulneráveis a mudanças. Como demonstra Butler (2003), mesmo a diferença entre pessoas heterossexuais e homossexuais não tem uma fronteira conceitual-prática concretamente definida, a performance de gênero é socialmente construída, e sua fixidez é abalada pela existência de pessoas que vivem a ambigüidade, como drag queens e kings, ou que não se identificam com o sexo que lhes foi designado ao nascer, como mulheres e homens transexuais (homem transexual é definido como a pessoa “que reivindica o reconhecimento social e legal para o gênero masculino” (Bento, 2008, p. 143), e mulher transexual é definida como aquela “que reivindica o reconhecimento social e legal para o gênero feminino”).
Para Sennet (1988), o significado das relações políticas como relações civilizadas tem-se esvaziado, em função da exposição pública de vivências privadas, o que diminui a sociabilidade advinda da experiência de buscar conhecer o outro por meio de sua atuação política, e não da espionagem de sua intimidade. Isso demonstra que a dimensão afetivo-sexual é nuclear na rediscussão da sociedade contemporânea.
Transformações sociais levam a mudanças que repercutem também nos campos da sexualidade e da identidade, onde agora Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBT) buscam, a exemplo da luta feminista, transformar assuntos tidos como privados em pautas de ordem pública. O grande desafio é preservar as intimidades mesmo que tornando as práticas nelas vividas em assunto de discussão para a participação política. A sexualidade, como diriam Giddens (1993) e Foucault (1988), é elemento central desse debate.
A atuação política cotidiana do movimento social LGBT é pouco conhecida pela sociedade. As Paradas do Orgulho LGBT, ao contrário, têm alcançado ampla visibilidade.
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2. Movimentos Sociais e Psicologia das Minorias Ativas
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Um movimento social é uma forma de ação coletiva na qual as dimensões da solidariedade, do conflito e da ruptura com a lógica do sistema social se inter-relacionam (Melucci, 1999), para a realização de objetivos comuns (ideologia) e sob uma organização diretiva mais ou menos definida (Scherer-Warren, 1989). De acordo com Milgram e Toch (1969), o sucesso de um movimento social não depende de tamanho, organização, qualidade da liderança ou sofisticação, mas da capacidade de expressar sentimentos, ressentimentos, preocupações, temores, ânsias e esperanças de uma coletividade; e do quanto pode ser visto como veículo para solução de problemas.
A atuação de um coletivo pode não mudar as estruturas de poder, mas pode influenciar a sociedade. Todo indivíduo em um grupo e todo grupo em uma sociedade é fonte potencial e receptor potencial de influência, aquém à quantidade de poder que o sistema social lhe atribua, e a influência social pode ser um fator de mudança social (Moscovici, 1981).
Notam-se tais características no movimento social LGBT. Apesar do número expressivo de participantes das paradas, estas não necessariamente conseguem reverberar imediatamente nas estruturas de poder. De centenas de candidatos a cargos políticos no processo eleitoral do ano de 2008, ligados ao movimento LGBT, que teve centenas de Paradas e uma contando milhões de participantes, somente 5 vereadores foram eleitos (Tribunal Superior Eleitoral – TSE, 2008; Veja, 2008). Autoridades financiam os projetos das Paradas, mas dificilmente são regulamentadas Leis que garantam direitos aos LGBT; a população em geral participa massivamente dos eventos, porém, nos demais dias, o grupo social LGBT é cercado de silêncios ou de falas preconceituosas, senão de ações discriminatórias.
Como população afetada por preconceitos e discriminações históricas, LGBT compõem um grupo que cria espaços de influência para além do voto em representantes, viabilizando, cada vez mais, uma democracia direta pautada pela integração social.
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3. Participação Política de Grupos Minoritários
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Para Dallari (2004), política é “a conjugação das ações de indivíduos e grupos humanos, dirigindo-as a um fim comum” (p. 10). A natureza da participação política está nas decisões tomadas a fim de solucionar problemas comuns em uma comunidade ou grupo.
A participação política se faz, na maioria dos casos, não na administração pública direta, mas em espaços alternativos que capacitam as pessoas a “intervir no desempenho dos representantes em nível nacional” (Pateman, 1992, p. 146).
A motivação básica de garantir direitos, entretanto, pode não se traduzir em participação política efetiva. Dados apresentados por Facchini, França e Venturi (2007), demonstram opiniões progressistas de participantes da parada de São Paulo, porém pouco conhecimento de instrumentos legais com relação às demandas da população LGBT.
. 4. As Paradas do Orgulho LGBT
. Iniciadas em 28 de junho de 1970 nas cidades norte-americanas de Nova Iorque e São Francisco, enquanto marchas de teor estritamente político, para denunciar a violência contra os homossexuais, as paradas remetiam a um fato histórico: a revolta do bar nova-iorquino Stonewall Inn, ocorrida em 28 de junho de 1969, onde centenas de freqüentadores enfrentaram a repressão policial (Skillings, 2010; Dunlap, 1999), ação noticiada pelos jornais The New York Times (1969) e New York Post (1969).
A cultura brasileira sempre possibilitou espaços marginais para a expressão, mesmo que estereotipada, das identidades sexuais não-hegemônicas, tais como o Carnaval, como apontam Fry e MacRae (1985), Green (2000) e Trevisan (2000).
A primeira manifestação pública realizada no Brasil pelos direitos de homossexuais ocorreu em 13 de junho de 1980, uma passeata contra a homofobia policial em São Paulo (Trevisan, 2006). Como indica Parker (1992), desde a década de 70 do Século XX estava em desenvolvimento no Brasil uma organização da comunidade LGBT em torno do fortalecimento de sua identidade e da inclusão junto à sociedade. MacRae (1990) relaciona o fortalecimento político das identidades sexuais não-hegemônicas ao processo de abertura pós-ditadura militar, considerado por Ferrari (2004) como um estímulo para a mobilização de grupos que sofriam restrições sociais e políticas. Pollak (1992) fala, ainda, do impacto da epidemia da AIDS para a visibilidade da condição homossexual e dos anseios de LGBT.
Em 2008, segundo a Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais – ABGLT (2008), ocorreram em todo o território nacional mais de 195 paradas. De acordo com a Associação da Parada do Orgulho de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais de São Paulo – APOGLBT (2008), a parada de São Paulo, realizada em 28 de maio do referido ano, reuniu 3,4 milhões de pessoas. 46% dos presentes na parada de São Paulo em 2005 (Folha de São Paulo, 2005a) se declararam heterossexuais (66% entre as mulheres e 32% entre os homens, o que indica diferenças comportamentais devidas a fatores de gênero relacionados à disposição pessoal em estar presente nesses eventos), e 11% explicitaram ser bissexuais.
Com relação à parada de São Paulo no ano de 2005, 38,7% dos homens se consideravam homossexuais, e 3,9% bissexuais; entre as mulheres, 17,8% se considerou homossexual, e 4,9% bissexual (Carrara, Ramos, Simões & Facchini, 2006). 78,5% das lésbicas e 72,8% dos gays lá estavam para que “homossexuais tenham mais direitos”, enquanto 54,3% das mulheres heterossexuais e 46,35% dos homens heterossexuais participavam da Parada por “curiosidade/diversão” (p. 21). 57,6% dos entrevistados relataram ter algum engajamento pelos direitos dos LGBT e 26,7% disseram estar ali por curiosidade ou diversão.
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5. A Carnavalização nas Paradas
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DaMatta (1991) questiona porque o carnaval é exportado como importante fator de nossa nacionalidade. Retomando o conceito de carnavalização (Bakhtin, 1987), o autor aponta o carnaval como um momento de catástrofe controlada, em que, por um tempo, invertem-se os papéis sociais, raciais e sexuais estabelecidos. DaMatta (1983) encontra semelhanças e diferenças entre o carnaval e a parada militar, postulando que o carnaval é uma festa popular consagradora da desordem, enquanto as paradas militares são festas controladas por instituições que comemoram a ordem. Ambos podem ser tidos como teatralizações e festas porque são “momentos extraordinários marcados pela alegria e por valores que são considerados altamente positivos” (p. 40).
A festa apresenta questões comunitárias, fala de relações pessoais, e não estruturais. O carnaval tem sido, para os LGBT, um espaço transitório de afirmação de sua identidade marginalizada socialmente, porém tolerada dentro de certos parâmetros (Green, 2000). Os elementos carnavalescos das paradas são considerados por Silva (2006) como espaços de “ruptura com o rigor da vida cotidiana” (p. 288) que visibilizam os marginalizados.
Não se costuma considerar como possível a presença de carnavalização, tida como “não séria”, em eventos políticos de caráter reivindicatório, ditos “sérios”. As paradas quebram esse paradigma, têm um caráter reivindicatório, ao mesmo tempo em que dramatizam as diferenças. Essa proposição é reiterada pelo antropólogo Ronaldo Trindade (Folha de São Paulo, 2005b), para quem as paradas brasileiras combinam elementos de festa e de política, diferenciando-se das congêneres norte-americanas porque, nessas, somente membros de grupos organizados podem participar.
No contexto brasileiro, Gontijo (2009) defende a idéia de que, sendo o carnaval um momentum de reforçamento da identidade nacional por meio de ritualizações expressas, é em tal contexto histórico que se encontram brechas para construir identidades “homossociais”, que se forçam a acontecer “em espaços não forçosamente gays” (p. 181).
As Paradas definem-se, assim, como ritos de identificação das diferenças e de valorização da diversidade entre LGBT, porque realizam performances de identidades e papéis sociais não-hegemônicos.
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6. Paradas como Rituais
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Para Peirano (2003), tanto o carnaval como a marcha política se constituem como rituais, na acepção de que, no ritual carnavalesco, prevalece “a sugestão de que o momento extraordinário pode se transformar em rotina” (p. 44), enquanto na marcha política, a natureza ritualística está em seu caráter sacrificial, remontando, como evento único e especial, às procissões, mas partindo dessa estrutura para dispor de seu caráter questionador.
As paradas se encontram entre essas duas dimensões, possuindo características do carnaval, que tenta realizar utopias, e da marcha política, que questiona o status quo. Entretanto, recusaram-se a ter o caráter de unicidade das marchas militares, mas adotaram o perfil de calendário dos carnavais, onde o evento ocorre em datas pré-definidas. Ainda, as Paradas são ritos de aceitação dos simpatizantes da causa dos LGBT, que partilham dessa “informação” no sentido atribuído por Goffman (1988) para o contexto de um estigma.
Camargos (2004) aponta que o caráter ritualístico das paradas incorre na possibilidade de expressão do desejo, algo que em outros contextos e dias do ano é reprimido em público. A expectativa de uma condição de vida mais alegre é um elemento em comum com o carnaval.
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7. Territorialidade e Identidade nas Paradas do Orgulho LGBT
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A localização das ações está diretamente relacionada com a sua eficácia, “os lugares repercutem os embates entre os diversos atores e o território como um todo revela os movimentos de fundo da sociedade” (Santos, 2007, p. 79). Essa concepção reitera a observação de Elias e Scotson (2000) de que o território ocupado por um sujeito é indicativo do estigma que ele sofre ou não, pois “o território pode ser estigmatizado como aquele ocupado por tais pessoas” (p. 36).
O trajeto de uma Parada pode ser indicativo dos objetivos dos organizadores. Em São Paulo, ela é realizada ao longo da Avenida Paulista, descendo a Consolação e terminando na Praça da República. Há um caráter econômico implícito na realização, que faz parte da programação turística oficial da cidade, e tem eventos paralelos, nos quais são vendidos produtos com símbolos da população LGBT.
Há aí diferentes visões quanto à delimitação da identidade e do território homo/bissexual e transgênero e quanto à inserção social desses grupos. A busca de integração dos LGBT ao território social mais amplo é um elemento em comum, procurando dialogar com outras forças sociais.
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Metodologia
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1. A Pesquisa sobre as Paradas
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Sintetizando-se os objetivos da pesquisa de doutorado que referencia este texto, foi investigada, em uma das três pesquisas constituintes desse trabalho, que ora se apresenta, como os participantes de uma Parada do Orgulho LGBT percebem, definem e explicam esse evento e a sua participação nele, considerando os aspectos políticos e festivos da manifestação.
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2. Sujeitos
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Foram entrevistados participantes da Parada do Orgulho LGBT de São Paulo, durante a sua realização no ano de 2009, constituindo uma amostra de conveniência (pessoas eram abordadas ao acaso enquanto caminhavam em direção aos trios elétricos).
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3. Procedimentos e Instrumentos
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Privilegiou-se a livre expressão dos respondentes, por meio de uma técnica de entrevista semi-estruturada exaustiva, com foco nos temas “festa” e “política”, na qual as questões eram apresentadas e se buscava aprofundá-las. A cidade de São Paulo foi escolhida como lócus de pesquisa em função da representatividade demográfica.
As entrevistas foram analisadas no software ALCESTE (Reinert, 1990). Partindo-se da análise da distribuição do conjunto dos vocábulos, foi calculado o χ2 (medida da co-ocorrência de palavras), para identificar os termos mais significativos. O software classifica enunciados que comportam uma idéia ou representação, as quais são agrupadas para formar classes de significados, noções e percepções de mundo com certa estabilidade temporal.
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Resultados
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Foram identificadas 3 (três) classes: Classe 1, A Política e o Público; Classe 2, História Pessoal de Participação; e Classe 3, Parada: Protesto da Emoção. Termos como “preconceito” (χ2=20), “homofobia” (χ2=13), “propostas” (χ2=22), “direitos” (χ2=59) e “leis” (χ2=70) compõem o significado da Classe 1, indicando que ela trata de temas relacionados à questão do direito, da política, simbolizada pelas propostas e pelas leis, como possibilidade de enfrentamento ao preconceito.
A Classe 1 acentua os fatores de mudança política e de mudanças na relação da sociedade com a população LGBT identificados com a Parada do Orgulho LGBT. Mesmo que tais fatores sejam percebidos como algo do futuro, na forma de projetos ou propostas, tal perspectiva de mudança permite aos participantes justificar sua presença e sua alegria naquele evento, para além do caráter puramente festivo.
A idéia central sugerida é a de que a emoção não pode ser dissociada da política, e de que a dimensão festiva é elemento central para a realização dessa concepção de mundo, de vida, até, e a Parada é o espaço real, palpável, onde essa correlação é concretizada, onde a emoção encontra a política, e o protesto encontra a festa.
Na Classe 2, denominada História Pessoal de Participação, observam-se termos como “então” (χ2=21), “estava” (χ2=16), “grupos” (χ2=12), “era” (χ2=12) ou “tinha” (χ2=11). A reiteração de verbos referentes ao passado potencializa a idéia de que a classe se refere à história pessoal de constituição do sujeito frente à questão dos seus direitos, ou mesmo como fator explicativo, ou melhor, justificador de sua participação na Parada. A participação em grupos pode ser sugerida como um elemento importante na configuração dessa história que, apesar de ser pessoal, foi subsidiada pelo envolvimento em um espaço coletivo.
A Classe 2 aponta o enfoque histórico como uma das explicações para a participação da pessoa no evento Parada do Orgulho LGBT, descrevendo os locais, tempos, instituições envolvidas nessa construção de sua identidade enquanto participante de um evento público como é a Parada, sob um enfoque consideravelmente individualizado.
A Classe 3, Parada: Protesto da Emoção, apresenta termos semelhantes aos da Classe 1, como “protestos” (χ2=39) e “políticos” (χ2=16), o que reitera a proximidade contextual entre as mesmas, além de palavras que podemos denominar como “conceitos-balão”, os quais englobam vários outros, o que permite uma multiplicidade de interpretações, tais como “mundo” (χ2=25), “tudo” (χ2=22) e “qualquer” (χ2=28), além de evocações mais específicas, a exemplo de “votos” (χ2=17), “certeza” (χ2=45), “grandes” (χ2=11) ou “festa” (χ2=27).
O termo “festa” se destaca na Classe 3, mais relacionada à emoção. A classe descreve, de forma específica e detalhada, o papel da política e da ocupação dos espaços públicos como fundamentais para o funcionamento da Parada do Orgulho LGBT, e mesmo para justificar sua existência em termos políticos, como evento festivo que se constitui como um protesto diferenciado.
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Discussões
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Os homens, ao se referir à Parada, têm um discurso mais voltado às características políticas desse espaço para a construção de direitos. A leitura dos homens tende a ser menos ligada a fatores históricos que justifiquem sua participação na Parada, ou seja, sua reflexão depende menos de uma história pessoal de participação do que da reflexão quanto à cidadania.
Já as mulheres tendem a perceber de forma mais pessoal o evento. A leitura das mulheres acerca da Parada tende a ser mais personalizada do que calcada em projetos coletivos, no sentido em que entendem essas demandas a partir de sua própria vivência, do que vivem e percebem no seu cotidiano, o que aprofunda seu relacionamento com o enfrentamento aos problemas e desafios.
Quanto à orientação sexual, homossexuais tendem a ter percepções próximas às das mulheres, valorizando a história pessoal de participação. Bissexuais tendem a se orientar de modo semelhante ao dos homens, percebendo o evento a partir da construção de coletivos.
Heterossexuais tendem a ter percepções muito próprias, não necessariamente alinhadas com as de homossexuais e bissexuais ou de homens e mulheres, a emoção vivenciada no momento da Parada é mais preponderante e reconhecível do que uma reconstrução histórica, pautada pela história pessoal de participação, ou do que uma construção política.
O resultado aponta para a possibilidade de que as pessoas mais distanciadas das discussões políticas e de uma história pessoal ligadas ao movimento LGBT, no caso heterossexuais, encontram na vivência afetiva da Parada uma justificativa para ali estar.
Outro aspecto que permeia as falas dos participantes é o da participação política. O fato de estarem naquele lugar e poderem ser quem são ou vivenciar o que desejarem é, per se, ato de manifestação política para além dos mecanismos tradicionais.
Em resposta às limitações impostas pelos guetos, a realização das Paradas do Orgulho LGBT nos espaços públicos se apresenta como iniciativa propícia à rediscussão dos modelos de visibilidade e de liberdade; são, por si sós, apropriando-me das palavras de Toneli e Perucchi (2006), “novas estratégias de construção da equidade e da visibilidade de gênero” (p. 46), territórios provisórios, mas eloqüentes no discurso de respeito às diferenças.
As percepções dos participantes da parada de São Paulo indicam que a ocupação de espaços ultrapassa a barreira da mera festividade, representa a transformação dos horizontes ideológicos acerca dos temas que nas Paradas do Orgulho LGBT se abordam.
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