sábado, 18 de maio de 2013

Quem é a Diversidade?

Foto que tirei em uma quadra comercial de Brasília.
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QUEM É A DIVERSIDADE?*
Jaqueline Gomes de Jesus, doutora em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações pela Universidade de Brasília - UnB, professora do Centro Universitário Planalto do Distrito Federal - UNIPLAN, pesquisadora da Rede de Antropologia Dos e Desde os Corpos e membro da Associação Brasileira de Psicologia Social - ABRAPSO e da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros - ABPN.
*Adaptação de discurso que fiz no Memorial dos Povos indígenas, em Brasília, no dia 8 de agosto de 2007, como convidada do evento "Diálogo Indígena: Os Direitos Humanos e a Afirmação da Identidade Inter-Étnica".
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A diversidade existe, ponto. Existia e não existia antes de as pessoas verem diferenças, mas depois de se ver diferenças é que ela passou a ser vista.
Cada pessoa tem uma visão diferente para o mundo perfeito. Um mundo perfeito não existe fora da concepção de quem o imagina, até porque as visões do que quer que seja "perfeição" têm tal disparidade que se poderiam criar vários mundos perfeitos, e não apenas um, e cada um desses mundos poderia ser um inferno para outros. Em um mundo como o nosso, a "perfeição", relativizada, tem necessariamente que ser diversificada, múltipla e formada pela fragmentação que chamamos de "realidade".
Quanto mais as sociedades se interpenetram na conjuntura da globalização, mais se pluralizam as diferenças individuais e grupais, ou, no mínimo, as diferenças já existentes se tornam evidentes, quando anteriormente não o eram. Nesse contexto, fortalecer as parcerias entre as pessoas resulta favorável à evolução de quaisquer sociedades.
O termo "Diversidade", da forma que o utilizamos atualmente, significa, desde um antigo Dicionário Aurélio (Ferreira, 1975), diferença, dessemelhança, dissimilitude, divergência, contradição, oposição. A palavra “Diversidade” não pode se restringir à listagem de seus sinônimos, porque engloba conceitos antônimos, situações específicas e pessoas concretas.
A Diversidade e a adversidade são palavras de sons semelhantes, cujos sentidos soam parecidos a uma parte considerável das pessoas. Diante do absurdo cotidiano, das queixas quanto ao isolamento na vida moderna, confunde-se Diversidade com um embaralhado de belicosas diferenças, e não é incomum serem geradas as ideologias da uniformidade, que promovem, em seus adeptos, a crença de que outros grupos são inferiores por natureza. Toda produtiva Diversidade é desprezada, em prol de uma reprodutiva igualdade que só produza iguais ideias.
O maior desafio de quem lida com preconceitos é ser capaz de propiciar o reconhecimento, o respeito e, preferencialmente, a valorização das diferenças, que passam a ser entendidas e pensadas além dos estereótipos cotidianos sobre o "outro", os quais tendem a limitar as possibilidades desses outros discriminados na sociedade. Concepções e vivências que levam a ideologias discriminadoras são concepções falaciosas e vivências imaturas.
O conceito de Diversidade é umbilicalmente ligado ao seu objeto real, e é um paradoxo: o paradoxo fundamental da Diversidade Humana é que somos todos iguais, porém diferentes e únicos, conforme ensinou o psicólogo social Gordon Allport (1954).
O mundo é criado pelos seres humanos, que nele são criados: se o mundo fosse diferente dos seres humanos que nele se movimentam, ele necessariamente teria de ser uniforme, e qualquer característica que o mundo impusesse às pessoas seria facilmente explicada; isso, entretanto, não acontece.
A sociedade não ocupa um espaço definido por coordenadas precisas: a bem da verdade, sequer existe em um espaço, propriamente dito, fora das pessoas; a sociedade existe nos sujeitos que a pensam, sentem-na, produzem-na e a reproduzem. É mera ilusão ou tradicional superstição crer que, por exemplo, um estado tenha de fato fronteiras físicas; essas fronteiras existem sim, mas na mente das pessoas, que as representam, materialmente, por meio da construção de placas, cercas, muros, pela escrita ou por quaisquer outros recursos gráficos disponíveis.
Por isso é que a Diversidade só existe como ideia resultante da perspectiva do observador: a Diversidade é o resultado da reflexão extremamente pessoal que os homens fazem das formas idealizadas da sociedade: o outro é diferente de mim enquanto o vejo como tal e até quando ele se perceba de tal forma, o que normalmente só ocorre quando ele entra em contato com membros de outros grupos, que o identifiquem como um outro.
A individualidade não é absoluta, mas adaptável à conjuntura composta pelas demais individualidades. Não há jamais duas pessoas com o mesmo grau de consciência, mas graus semelhantes de concordância no que se refere a certos debates. Essa afirmação concebe a Diversidade como um agregado de características sempre interativo que tanto pode ser harmônico quanto dissonante, é como Música: a "harmonia" seria representada pela convivência equilibrada com a Diversidade, pautada por atitudes de respeito e valorização das diferenças; a "dissonância" seria representada pela discriminação e pelo preconceito.
Tudo o que falei até agora foram ideias, agora, vamos ao Brasil.
De acordo com a Constituição Federal de 1988, dentre os objetivos fundamentais da República consta, no capítulo dos direitos e deveres individuais e coletivos: "promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação" (Brasil, 1988; p. 3) , sendo que "a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais" (p. 8).
A proposta constitucional de "promover o bem de todos" e de punir "qualquer discriminação" ainda não foi plenamente aplicada em território nacional, tornou-se um mito que instiga as pessoas preocupadas com a realidade a prosseguir lutando até concretizar seus ideais de igualdade de oportunidades para todos, e esse tipo de igualdade só pode ser alcançado por meio de uma isonomia verdadeira entre as classes historicamente desprivilegiadas e as privilegiadas, a qual não pode ser alcançada simplesmente por políticas universalistas de apoio, mas por ações efetivas ou afirmativas de incentivo à melhoria das condições dos desfavorecidos, dada a exclusão que diferencia a humanidade, sem uni-la no que têm de comum: essa mesma humanidade.
Relatarei uma cena vista em qualquer cidade do Brasil, foi vista em Brasília, e contada pelo senador Cristovam Buarque (1999) em seu livro O que é Apartação: dois jovens, em um carro, divertiam-se despejando batatas fritas, compradas em uma lanchonete fast food multinacional, no chão, para meninos de rua que as catavam, rastejando indignamente, a fim de comerem aquele alimento rejeitado pelos mais ricos.
O ato daqueles jovens abastados demonstra o severo grau de distanciamento entre uns e outros no Brasil, ricos e pobres, brancos e negros ou indígenas, afastamento não apenas físico, mas brutalmente humano e econômico, distanciamento comparado outrora com o da Bélgica para com a Índia, só que dentro do mesmo território nacional. A sustentação de uma sociedade como essa não garante o futuro, mas a perpetuação do passado, fantasiado de progresso.
Um passado construído em colônia, com guerras e genocídios contra os indígenas, com escravidão contra os negros, com censura para os que trazem outros discursos. Traumas não tratados de uma cultura. Quem inventou isso tudo neste Brasil foram os dominadores, os dirigentes (todos os artigos propriamente no masculino); os indígenas e negros não estavam entre esses, na verdade sofriam por causa deles.
O nosso subdesenvolvimento ou desenvolvimento recente, como queiram, não é apenas econômico, é ético, e essa ética precária se relaciona com as disparidades sociais que permitem a alguns cidadãos desperdiçar fartamente os recursos de que dispõem, enquanto a outros falta tudo.
A negação de valor à Diversidade das pessoas, especialmente aos marginalizados, por meio de seu silenciamento ou da incapacidade de escutar suas demandas, inviabiliza o desenvolvimento integral da sociedade que os discrimina, diminui e amesquinha a riqueza de toda a nação, seja econômica ou cultural.
Como escreveu o professor Helio Santos (2003), a desigualdade social no Brasil se explica e se perpetua por meio da desigualdade etnicorracial, a qual se orienta por tecnologias da exclusão. Em outras palavras, o Brasil nunca será o país do futuro enquanto continuar deixando o futuro passar em branco para negros e indígenas.
A superação das disparidades é difícil em uma sociedade cujas elites tentam a todo custo manter privilégios, rechaçando os excluídos de qualquer chance de mudança de sua realidade, principalmente quando se criam obstáculos para o acesso dos excluídos a todos os níveis de educação, mas principalmente ao ensino superior, o que redunda na baixa escolaridade e, por fim, em um desemprego insuperável.
No Brasil, educação foi pensada, ao longo de séculos, como uma questão mais de status do que de desenvolvimento. Por isso é que ações afirmativas na educação, como as cotas para negros ou o vestibular diferenciado para indígenas, para além de serem atos de justiça social e elementos impulsionadores do desenvolvimento, mostram que o limitado conceito de mérito que tínhamos/temos, que desconsiderava conjunturas sócio-educacionais e particularidades nas trilhas de aprendizagem, era/é falso, racista, filho do genocídio e do eurocentrismo.
Na cultura brasileira, a/o cidadã/o negra/o ou indígena é interpretada/o na categoria fixa construída pela sociedade racista e eurocêntrica. Em função da gradação da cor da pele e de características anatômicas, a pessoa é socialmente invisibilizada: o que se vê não é a/o cidadã/o negra/o ou indígena, mas a sua negativa, a não cidadania. O que se vê não é a humanidade de Lélia Gonzales/Zumbi ou de Eliane Potiguara/Uirá, mas aquela/e que deve ser depreciada/o ou morta/o.
Não espanta o fato de tantos brasileiros se comportarem cinicamente no que concerne à questão do racismo, intitulando-se "democratas raciais", enquanto o preconceito e a discriminação contra a população negra e indígena transbordam. O dito popular "só cego não vê" representa com propriedade a percepção do racismo pela classe dirigente: nega-se que exista, apesar dos indícios.
A imagem da pessoa negra ou indígena foi construída sobre estereótipos que variam, de sentimentos desagradáveis associados à "feiúra", até o grotesco, essa imagem transparece desde os livros didáticos, passando pelos jornais e revistas e despontando nos programas televisivos, quando raramente há pessoas não-brancas. A sociedade a criou, e trabalha continuamente para confirmá-la, por meio de sua reprodução nos meios de comunicação de massa.
É outra a imagem que queremos construir hoje, a partir do projeto de uma democracia real, não apenas imaginada. Queremos uma imagem que valorize a herança cultural e estética de nossa ancestralidade, que testemunhe o combate secular às injustiças que impedem a realização do sistema democrático na República Federativa do Brasil, luta que tem como alguns de seus muitos exemplos a chamada Guerra dos Bárbaros, de indígenas contra os invasores europeus, e o Quilombo dos Palmares.
Em mais este momento histórico em que o Brasil anseia se conhecer e (re)construir identidades brasileiras, nada mais adequado do que dialogarmos sobre negros e indígenas com/entre negros e indígenas. Afirmar nossa identidade brasileira, valorizando de fato e com igualdade a sua diversidade, poderá nos transformar no que ainda não somos, mas algo certamente muito melhor do que tudo isso que é aplaudido e premiado por aí em rede nacional.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Allport, G. W. (1954). The nature of prejudice. Reading: Addison-Wesley.
Brasil. (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, Centro Gráfico.
Buarque, C. (1999). O que é apartação. O apartheid social no Brasil. São Paulo: Brasiliense.
Ferreira, A. B. H. (1975). Novo dicionário da língua portuguesa. Nova Fronteira: Rio de Janeiro.
Santos, H. (2003). A busca de um caminho para o Brasil. A trilha do círculo vicioso. São Paulo: Senac.
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